quarta-feira, 29 de outubro de 2008

S.O.S.


Ficar sem energia elétrica nos dias de hoje significa perder o rumo das coisas. O portão não abre, o fogão não ascende (e nessa hora nunca se tem um fósforo à mão), o telefone não toca (é sem fio!), a água não esquenta, e por aí vai…se é de noite, então, acrescenta-se a tudo isso um tédio sem tamanho, que só amansa se der lugar aos questionamentos filosóficos sobre a vida moderna, do tipo “ahhh, no tempo da bisavó era assim, e as coisas tinham outro sabor”, ou com a leitura de um bom livro (mas confesso que isso não me atrai…o vai e vêm do fogo faz as letras se mexerem e fico tonta com isso!).

Aqui em casa, faltar a luz está se configurando em momentos de pura aventura. Com freqüência, no início da tarde, fico no breu com uma criança de três anos, um bebê de nove meses, uma babá e uma cachorra com siricutico constante. O que se desenrola parece roteiro de filme de comédia (ou será drama?).

 

Sem luz 1

No final de uma tarde ensolarada e abafada, caiu um pé d’água. E, em algum ponto não muito distante, uma árvore também caiu, justamente na rede que alimenta a energia de minha residência. Paciência. A princípio, o momento vira uma festa. Ascendo as velas (ainda bem que me lembrava do esconderijo delas), que lindo jogo de luz e sombra elas criam! As chamas dançam e hipnotizam as crianças. Mas por parcos cinco minutos (ou será menos?? O tempo parece não passar nestas horas). Inventamos mais alguns atrativos, tipo projeções de sombras na parede imitando bichinhos com as mãos (opa! Preciso correr atrás de algum curso do tipo, pois meu repertório se limita ao pássaro e ao cachorro). Cantamos uns quinze “parabéns a você”, cada vez menos animados (com cuidado pra não acabar com o gás do isqueiro…já pensou?). Mas a previsão manda esperarmos mais umas quatro horas até voltar à vida. Afe! E nosso prazo de validade está vencendo. A hora do banho também, e decido que ninguém toma banho nessas condições. Vamos diretamente ao jantar à luz de velas. A comida dá uma levantada no astral e…e…e aí? “Mãe, o que a gente vai fazer agora?”. O bebê chora, que trilha sonora perfeita! Que saudades das músicas infantis que tomam conta do ambiente, não deixam a gente raciocinar, mas acalmam a garotada! “Vamos esperar por aqui, juntinhos, olha que legal!”. “Vamos assistir à Cinderella, mãe?”. “Não tem luz, filha!”. “Não, måe, a gente assiste no escuro mesmo”. Como explicar a cadeia toda? Meio complexo, não?

Ouvimos um barulho. Deve ser a chuva. “Não, é lá na sala”, diz a babá. Correria. Eu entro pro corredor dos quartos com as crianças e fecho a porta. Tem um morcego voando em minha sala e eu tenho absoluto pavor de animais dotados de asas sobrevoando meus móveis. As velas ficaram na cozinha e nós, no escuro do corredor. Até eu fico com medo (mãe não pode sentir medo, gente!). Sobra então pra babá a árdua tarefa de espantar o mamífero voador, sem matar. E aqui cabem duas observações: a primeira é que, até nestas horas, temos que pensar no ecossistema; e a segunda, numa análise “sociológica”, sem querer, até nestas horas existe uma hierarquia social, em que as funções mais desagradáveis sobram para os da base da pirâmide.

O morcego se escondeu. “Pega uma vassoura, Gil. Dá uma cutucada nas cortinas e abra as janelas pra ele escapar!”. De longe é fácil dar ordens. Ainda bem que Gil é corajosa. Ela corre em busca da vassoura e…escorrega num cocô da cachorra, deixado bem no meio da cozinha. “A bruxa está solta”, penso. Com calma, a babá limpa o cocô, pega a vassoura e procura pelo morcego. Ele deve ter escapado, pois não resta um sinal de sua presença. O terror com a possibilidade de me encontrar com ele na madrugada duraria longas horas, mesmo depois do retorno da energia. Decido voltar à cozinha, de nada adianta ficar em pé atrás da porta, com aqueles pequeninos olhando pra mim com a interrogação de quem quer dizer “o que você está fazendo, mamãe?”. E tento recuperar o controle da situação, inventando novas brincadeiras. Minha filha mais velha resolve se distrair empurrando cadeiras, uma ótima e barulhenta idéia. Junta todas lado a lado, formando um círculo (criança é demais), sobe na nova construção e, no mesmo segundo, leva um tombo de costas.  E o choro, que mistura cansaço e dor, domina cada canto da casa. Era só o que me faltava. Saio pra procurar uma pomadinha que alivie e, no meio do caminho, sou surpreendida com a TV que começa a falar sozinha. Estou tão atordoada, que nem me dou conta de que a luz voltou. Com a vela na mão, concentrada na função, pego o remédio pensando na aflição de minha pequena, que chega cantando de alegria, sem nenhum resquício do susto anterior, celebrando o colorido das coisas iluminadas pelas lâmpadas. Ufa.


Sem luz 2

Numa calma tarde de setembro, vou feliz buscar minha filha na escola. Adoro este momento. A gente vem cantando durante o caminho todo, ela me conta o que fez, e eu me espanto toda vez com a evolução de suas narrativas. Só que nesta calma tarde de setembro ela estava muito cansada, enjoadinha. Percebi já na porta da escola aquele olhar vago, o rosto pálido, a vontade de só ficar no colo. “Deve ter aproveitado até”, penso. “Tô com dodói na barriga, mamãe”. “A gente já está chegando em casa, filha. Vamos tomar um banho bem gostoso, comer a papinha e assistir um filminho”. Ela parece nem escutar. Só fala sobre o dodói na barriga. De repente, huuugo, ela tosse e lava o carro com o lanchinho da tarde. Meu Deus, nunca tínhamos vivido isso! Ela, corajosa e quietinha, esperando a hora de parar o carro e sair daquela sujeira. Ainda bem que moramos perto da escolinha!

Começou a chover no caminho e…adivinhem…minha casa já estava sem luz! Estaciono, abro o portão na mão mesmo, debaixo da chuva e tentando ser o mais rápida possível. E a coitadinha lá, esperando, presa na cadeirinha úmida. Entramos na garagem, nem penso em cuidar do carro.

O que se sucede nas horas seguintes é de tirar qualquer um do eixo…vômitos pela casa toda. Olivia está com uma virose daquelas. A previsão da volta da energia, como da outra vez, é de desesperar. Não se enxerga o estrago do vômito nestas condições, então nos resta cobrir as poças com panos e toalhas. As próximas horas são assim: vômitos, choro, panos e toalhas pelo chão. Meu celular toca. Meu marido, no caminho pra casa, diz estar passando mal…ele também tem a virose. Uau. Ligo para a pediatra, ela me receita uma medicação. Ligo na farmácia, encomendo. Não tenho dinheiro, pego emprestado do porteiro do condomínio. O bebê chora. E eu aproveito as velas acesas para rezar pela volta da luz. A correria neste dia é grande, e a peteca não pode cair. Por onde ando, minha filha vai atrás, pedindo colo, chorando e vomitando. No vai e vem da noite, ao passar pela porta da cozinha, ela prende o dedo na porta. O drama aumenta.

Como vou fazer pra administrar essa turma na madrugada? Marido e filha doentes, um bebê que acorda o tempo todo…socorro!!! Quero minha mãe!!!!!!!! Ligo pra ela, que vem correndo. “Por que demorou tanto pra chegar, mãe?” “Sua rua estava interditada, peguei um atalho de terra, na escuridão, não sabia o caminho, pedi ajuda pro garoto da segurança (se é que era da segurança), ele foi correndo na frente do carro, fiquei com dó e medo ao mesmo tempo, pedi pra ele entrar, a chuva apertou, quase atolamos”. Pra mim chega. Vou tentar dormir à luz de velas, até ser acordada por algum aparelho eletrônico ressuscitando no meio da madrugada (ou um dos doentes clamando por atenção).

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Aos nossos filhos 2

Mais emocionante que o texto recém postado é esta música composta por Ivan Lins e Vitor Martins. Ouvi muito na adolescência, quando pirava nos discos da Elis Regina. Ficava emocionada, imaginando seus filhos escutando a mensagem, sem jamais cogitar que, anos mais tarde, meu marido faria um arranjo para um deles cantar. Assistam ao DVD ao vivo de Pedro Mariano, é lindo. Eu estava lá também, no palco, com um barrigão de seis meses! 
Depois de virar mãe, fica quase impossível ouvir esta música sem ao menos arrepiar cada pêlo do corpo.

Perdoem a cara amarrada, 
Perdoem a falta de abraço, 
Perdoem a falta de espaço, 
Os dias eram assim... 

Perdoem por tantos perigos, 
Perdoem a falta de abrigo, 
Perdoem a falta de amigos, 
Os dias eram assim...

Perdoem a falta de folhas, 
Perdoem a falta de ar 
Perdoem a falta de escolha, 
Os dias eram assim...

E quando passarem a limpo, 
E quando cortarem os laços, 
E quando soltarem os cintos, 
Façam a festa por mim...

E quando lavarem a mágoa, 
E quando lavarem a alma 
E quando lavarem a água, 
Lavem os olhos por mim... 

Quando brotarem as flores, 
Quando crescerem as matas, 
Quando colherem os frutos, 
Digam o gosto pra mim... 

Digam o gosto pra mim...

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Aos nossos filhos 1

No mar inesgotável de coisas interessantes e muita bobeira que circulam na internet, a gente de vez em quando se depara com textos que saltam aos olhos e nos fazem arquivá-los para a eternidade (até que um vírus os destrua, rsrs). O texto abaixo, que recebi de uma querida amiga há tanto tempo, é de uma sensibilidade extrema e super pertinente a qualquer contexto em que a discussão sobre maternidade/paternidade se faz presente.
Infelizmente não tenho o crédito de seu autor (mesmo que o tivesse, desconfiaria...tanta coisa já creditaram a tanta gente de maneira equivocada...), mas imagino que ele tenha escrito seu "desabafo" para o mundo, para compartilhá-lo com todos os pais, de todos os tempos. Assim como fazemos ao criar nossos filhos, para o mundo...

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos seus próprios filhos. É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados. Crescem sem pedir licença à vida. Crescem com uma estridência alegre, e, às vezes, com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem de repente.

Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura. Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme do maternal? A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil...

E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça! Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros. Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados.

Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos que não repitam.

Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos. Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, pôsteres, agendas coloridas e discos  ensurdecedores. Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que  gostaríamos de ter comprado. Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto.

No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e  amiguinhos. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela  janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim. Depois chegou o tempo  em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados.

O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por  isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de re-editar o nosso afeto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam.

Aprendemos a ser filhos depois que somos pais...

  aprendemos a ser pais depois que somos avós...

Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes". Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito (nessa hora, se a gente  tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade.

E que a conquistem do modo mais completo possível.